Juiz explica como se dá a Audiência de Custódia
Em artigo divulgado nesta segunda-feira, o juiz Marcos Faleiros da Silva, que é juiz titular da Vara da Justiça Militar e da Custódia, na comarca de Cuiabá, explica como se processa a Audiência de Custódia, recentemente introduzida na rotina da Justiça de Mato Grosso.
No artigo, o magistrado argumenta não acreditar "que a criminalidade possa ser contida apenas com a atuação do juiz e respectivo encarceramento. Somos apenas uma engrenagem de uma máquina complexa, eis que as causas da criminalidade são oriundas das situações mais variadas, que vão desde questões patológicas (sociopatas e narcodependentes) até fatores sociais, tais como desemprego, migração, falta de ocupação dos espaços pelo Poder Público (p. ex. ausência do Estado nos rincões do Mato Grosso ou bairros criados a partir de “grilos” ou invasões), caos e desordem, sensação de abandono, educação/saúde ineficientes, etc. As instâncias de controle passam desde a família, clubes de serviço, igrejas, polícias, Ministério Público e, por fim, Poder Judiciário e sistema prisional (instância de controle de terceira seleção)."
Leia a íntegra do artigo.
OPINIÃO
Criminalidade e atuação do juiz
Por Marcos Faleiros
Na Audiência de Custódia, o cidadão autuado em flagrante delito é imediatamente apresentado a um Juiz, antes de ingressar no sistema prisional, oportunidade em que participará de uma audiência, conforme Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 7º, 5), ratificada pelo Brasil, com valor superior à lei.
Em Mato Grosso, avaliamos, com a ajuda de profissionais, o fato, a pessoa recolhida e a real necessidade da prisão preventiva do flagranteado, levando-se em consideração a proteção da sociedade e a dignidade da pessoa humana.
Em síntese, procuramos aquilatar se o preso é um indivíduo perigoso à sociedade, ou se trata de um cidadão comum em conflito com a lei. No primeiro caso, a prisão cautelar é inevitável, com vistas à garantia da ordem pública. No entanto, caso o preso seja uma pessoa recuperável, não ingressará no sistema prisional, sendo imediatamente lhe atribuída uma alternativa penal cumulada com uma medida assistencial, tais como tratamento da dependência química, encaminhamento para qualificação profissional/emprego ou direcionamento para programas de reestruturação familiar. Para isso imprescindível o apoio do Poder Executivo para o sucesso do programa.
Não cremos que a criminalidade possa ser contida apenas com a atuação do juiz e respectivo encarceramento. Somos apenas uma engrenagem de uma máquina complexa, eis que as causas da criminalidade são oriundas das situações mais variadas, que vão desde questões patológicas (sociopatas e narcodependentes) até fatores sociais, tais como desemprego, migração, falta de ocupação dos espaços pelo Poder Público (p. ex. ausência do Estado nos rincões do Mato Grosso ou bairros criados a partir de “grilos” ou invasões), caos e desordem, sensação de abandono, educação/saúde ineficientes, etc. As instâncias de controle passam desde a família, clubes de serviço, igrejas, polícias, Ministério Público e, por fim, Poder Judiciário e sistema prisional (instância de controle de terceira seleção).
Em Cuiabá, já atingimos quatrocentos presos em audiências de custódias, sendo que 41% dos encarcerados foram mantidos na prisão. Os demais receberam alternativas penais, e cento e cinquenta foram encaminhados para atendimento assistencial.
Uma mudança de paradigma. Cada preso custa em média R$ 3.000,00 ao Estado de Mato Grosso e, conforme dados do Depen e de entidades internacionais, o Brasil é o terceiro maior país que encarcera no mundo, ao lado da Rússia, com um índice alto de prisões provisórias, beirando à metade dos presos (Mato Grosso, 50% de presos preventivos).
Os números dizem o seguinte: a polícia prende; na maioria dos casos o Juiz mantém o preso no cárcere; o criminoso é condenado; porém o mesmo volta a delinquir em mais de 50% das vezes (o STF fala em 70% de reincidência); e os índices de criminalidade aumentam em progressão geométrica a olhos vistos.
Será que a prisão exagerada de pessoas inadaptadas à vida social ou de personalidade fraca, ao invés de preparar o delinquente para um promissor reingresso à sociedade, não está gerando um efeito contrário do que esperamos?
Não estaria o Estado pagando R$ 3.000,00/mês por preso, para que o flagranteado entre em contato com facções criminosas diversas e seja cooptado pela criminalidade e, ao sair da cadeia, não estaria a brutalizar ainda mais a sociedade?
Cremos que o Estado possa estar financiando o crime, formando “soldados inimigos”, cooptados nos quartéis da bandidagem, que são as penitenciárias. É uma aparente falta de nexo ou de lógica, porém é a nossa percepção. Ninguém se sente seguro com o atual sistema. Se o resultado é sempre o mesmo, porque não fazer algo diferente para mudar?
A título de exemplo, visualizamos todos os dias, na audiência de custódia, usuários de crack sendo, às vezes autores e, às vezes, vítimas de crime. Conforme dados do Conselho Federal de Medicina, estima-se que existam seis milhões de usuários no Brasil e o Ministério da Saúde trabalha com dois milhões de usuários.
Não precisa de pesquisa para ter conhecimento desse fato. Basta olhar as ruas de Cuiabá!
Dessa epidemia do crack, conforme pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, um em cada três viciados morre nos cinco primeiros anos de uso, e, o que é pior, 56,5% desses usuários morrem assassinados. No mesmo sentido, o documento “Diretrizes Gerais Médicas para Assistência Integral ao Dependente do Uso do Crack”, do CFM , relata que 85% dos usuários de crack morrem em casos relacionados à violência.
Outra constatação é a de que a maioria dos criminosos flagranteados são usuários dessa substância maléfica, e grande parte dos crimes tem o crack por causalidade. São furtos, roubos, homicídios, latrocínios, violência doméstica, estupros, etc. ou praticados por usuários ou tendo vítimas usuários.
Assim, quando verificamos na audiência de custódia que se trata de um dependente químico em conflito com a lei, caso não seja um delinquente perigoso e irrecuperável, não é benéfico para a sociedade que o mesmo seja encarcerado, porque lá se tornará um instrumento dos criminosos e organizações, aumentando os tentáculos da criminalidade, na medida em que um narcomaníaco assemelha-se a um “zumbi” e é altamente sugestionável.
Dessa forma, a ideia é investir dinheiro público na recuperação do dependente, com apoio psicossocial, reaproximação da família, tratamento do CAPS-AD, e encaminhamento para internação compulsória, na forma da lei.
Dependentes químicos são, ou vítimas de crime, ou autores de crime. Porque não investir R$ 3.000,00/mês em sua recuperação, ao invés de gastar esse dinheiro no seu encarceramento?
Esse é apenas um exemplo de investimento de dinheiro público no ser humano, e não no encarceramento, existem outros encaminhamentos, tais como qualificação profissional e emprego formal. No exemplo citado, fica evidente que não se deve combater a droga, devemos resgatar vidas. Políticas de repressão ao tráfico de drogas e álcool demonstraram ineficazes ao longo da história, a exemplo os Estados Unidos da América, que gastaram trilhões de dólares com as chamadas “leis secas” e “combate ao narcotráfico”, sem nenhum sucesso ao longo dos anos, tanto que atualmente está em processo de liberação a venda de substância entorpecente na maioria dos seus estados federados.
Como ensina Carnelutti, muito mais do que um problema de leis, o combate ao crime é “um problema de homens e de coisas”, devendo haver uma “boa escolha dos homens que, segundo tais, devem operar”.
Na Audiência de Custódia, o CNJ quer confiar aos Juízes a responsabilidade imediata, na presença do indiciado, de distinguir o indivíduo perigoso daqueles que não é, imediatamente à prisão, antes do flagranteado ingressar no sistema prisional, e, a partir daí, aplicar corretamente a norma, protegendo a sociedade nos seguintes termos:
a) Evitar que o cidadão de bem em conflito com a lei (primário, bons antecedentes, etc.) ingresse no sistema prisional, recebendo cautelares, alternativas penais e encaminhamentos assistenciais, prevenindo o ciclo da violência e da criminalidade, evitando que o flagranteado seja “adotado” por uma facção criminosa ou por um pai-delinquente e retorne à sociedade como um criminoso irrecuperável após passar pelo sistema prisional, a brutalizar ainda mais as pessoas;
b) Prender preventivamente os indivíduos perigosos, mitigando a presunção de inocência ou princípio da não-culpabilidade.
Na prática, cremos que a audiência de custódia é um instrumento moderno, eficiente e importante no combate à criminalidade, na medida em que mantém encarcerado o indivíduo perigoso e procura recuperar e salvaguardar o cidadão em conflito com a lei que ainda não se transformou num delinquente irrecuperável, ao mesmo tempo em que protege a sociedade por anular um provável criminoso que seria recrutado na penitenciária em razão de um equivocado encarceramento.
MARCOS FALEIROS DA SILVA é juiz Militar e da Custódia, na comarca de Cuiabá