A Burocratização dos Juizados Especiais
De acordo com o Artigo 8º, 1 da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos - São José da Costa Rica “Toda pessoa tem direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza”.
O mesmo acesso à justiça está previsto no artigo 5º, XXXV da Constituição Federalque diz: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”, podendo ser chamado também de princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou princípio do direito de ação.
Por sua vez, em sede de juizado, a teor do que dispõe o art. 2º da Lei 9.099/95, devem sempre ser observados os princípios norteadores para a composição de litígios de menor valor, principalmente no que concerne a simplicidade, informalidade, celeridade e a busca, sempre que possível, da conciliação e transação.
No entanto, algumas decisões proferidas nos Juizados Especiais Cíveis do Estado de Mato Grosso têm me chamado atenção, a meu ver, por ir de encontro, justamente com o espírito da legislação acima e principalmente da Justiça Especial em questão. Uma delas nos autos do processo eletrônico nº. 001.2009.020.092-2, em trâmite pelo Primeiro Juizado Especial Cível da Comarca de Cuiabá – MT, tratando de execução de astreintes, como abaixo se vê:
"... Quanto a execução da multa astreintes, a fim de evitar confusão processual no sentido de que a execução corra nos mesmos autos da ação principal, determino a parte reclamante que promova a execução da multa estipulada pelo comportamento omissivo do reclamado em autos apartados de acordo com a regra processual."
Do que pude observar com a leitura dos autos, houve o descumprimento de medida liminar pela parte reclamada que incidiu na consequente multa previamente fixada, no entanto, o magistrado extinguiu o processo em relação a esta mesma multa, e determinou a sua execução em autos apartados, mesmo com o trânsito em julgado do processo e a execução do principal, e ainda, com intimação válida para o pagamento.
Destaque-se o fato de que no atual estágio em que se encontra o ordenamento jurídico, o princípio da autonomia da função executiva, do seu ponto de vista estrutural, acabou excepcionado. Eliminou-se, na verdade, a necessidade de propositura de nova ação para a execução de sentença que condena ao pagamento de quantia certa, bem como aquelas para entrega de coisa, de fazer e não fazer, exigindo-se, para sua atuação, simples requerimento do credor no próprio processo de conhecimento.
A sentença no processo de conhecimento deixou, portanto, de ser o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo para tornar-se ato que implica em extinção do processo, sem resolução de mérito, ou julgamento com resolução do mérito, dando ensejo, em caso de parcial procedência ou procedência do pedido, ao requerimento de cumprimento de sentença por simples petição nos próprios autos, e não mais à propositura de ação de execução de sentença, mormente nos Juizados Especiais onde a simplicidade dos atos e a celeridade são princípios básicos a eles inerentes.
Assim dispõe o art. 475-I do Código de Processo Civil, o qual figura no Capítulo X, do Título VII, do Livro I, que trata do procedimento comum ordinário (processo de conhecimento), aplicável aos Juizados Especiais por força do art. 52 da Lei nº.9.099/95:
"Art. 475-I. O cumprimento da sentença far-se-á conforme os arts. 461 e 461- A desta Lei ou, tratando-se de obrigação por quantia certa, por execução, nos termos dos demais artigos deste Capítulo."
Desse modo, constata-se que o cumprimento ou execução de sentença, que tenha por objeto obrigações de fazer, não fazer, ou entrega de coisa, bem como de pagar quantia certa, será realizado no próprio processo de conhecimento, salvo disposição legal em contrário, em especial no caso em comento, onde há trânsito em julgado da sentença e levantamento do alvará referente à condenação principal.
Assim sendo, o processo autônomo de execução só existirá quando o título executivo for extrajudicial e, portanto, não houver uma sentença nem um processo pendente ou quando o título extrajudicial houver sido proferido fora do processo civil estatal, ou ainda em procedimentos executivos especiais ainda vigentes no ordenamento jurídico pátrio, tais como a execução contra a fazenda pública, execução de alimentos e execução fiscal, os quais se realizam em processo executivo autônomo, o que não se afigura no presente caso. Estamos, portanto, diante de obrigação certa, líquida e exigível, derivada de sentença judicial, devendo correr a execução nos próprios autos, conforme tem decidido os Tribunais Pátrios, e qualquer decisão diferente disso contraria a lei processual e, sobretudo os princípios norteadores dos Juizados Especiais.
Da mesma forma, ocorreu nos autos do Processo nº. 0055285-07.2014.811.0001, em trâmite pelo Sexto Juizado Especial da Comarca de Cuiabá - Mato Grosso, onde a parte reclamante, ao comparecer desacompanhada do seu advogado na audiência de conciliação, teve seu processo extinto, sem análise de mérito, a pretexto de contrariar o art. 9, caput, da Lei nº. 9.099/95, da seguinte maneira:
"Dispõe o art. 9, caput, da Lei nº. 9.099/95, in verbis:
Art. 9 -? Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória?.
Compulsando os autos, verifico que a parte autora ajuizou pedido em face da parte reclamada, onde o valor ultrapassa a 20 (vinte) salários mínimos, motivo pelo qual, não possui capacidade postulatória.
Assim, seguindo os ditames legais estabelecidos na Lei que dispõe sobre os Juizados Cíveis e Criminais, outro caminho não há senão a extinção do presente feito sem a resolução do mérito.
Ante o exposto, e por tudo mais que dos autos consta, JULGO EXTINTO O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, nos termos do art. 267, inciso IV, doCPC."
Neste caso, a parte reclamante constava devidamente assistida por advogado, desde o protocolo da peça inaugural devidamente assinada eletronicamente, assim também o sendo nos demais atos instrutórios subsequentes que a lei assim o exigisse, conforme instrumento procuratório juntado, o que não foi observado.
Ademais, de acordo com a mesma Lei nº. 9.099/95, que rege o processamento das reclamações nos Juizados Especiais, a extinção do processo só se justificaria em relação ao reclamante diante de eventual desídia da sua parte, ou seja, caso intimada para comparecer na audiência de conciliação, tivesse deixado de comparecer injustificadamente.
Nesse sentido, a audiência de conciliação é o primeiro passo na tentativa de solução do conflito, devendo se pautar pelos princípios já mencionados, sendo que o essencial para a realização da audiência é a presença das partes, não se podendo falar em extinção do processo por falta de algum aspecto formal que nenhum prejuízo trouxe ao exame do caso ou ao direito de alguma das partes.
A ausência de assistência por parte de advogado em audiência de conciliação, mesmo nas causas de valor superior a vinte salários mínimos, não se mostra relevante, porque, com a presença de ambas as partes a possibilitar a discussão da causa e a tentativa de acordo, o fim maior buscado pelo rito sumaríssimo foi atingido, sendo que, se apegar a literalidade da obrigatoriedade disposta no art. 9º da Lei9.099/95 e entender imprescindível a presença de advogado, mesmo na audiência de conciliação, se constitui num equívoco e contraria os princípios orientadores do juizado, mais precisamente o da informalidade, uma vez que a interpretação que deve ser feita ali é a interpretação teleológica ou finalística, buscando os fins visados pela norma.
Nesse passo, a doutrina e a jurisprudência tem verificado que a melhor interpretação da regra processual contida na Lei 9.099/95 indica que a assistência por advogado nas causas de valor superior a vinte salários mínimos só é imprescindível, obrigatória, na audiência de instrução e julgamento, onde há a produção de provas e a atuação de profissional com conhecimentos jurídicos se revela de suma importância.
Acerca do tema já houve, inclusive, a análise e interpretação em Fórum Nacional dos Juizados Especiais – FONAJE, que editou o seguinte enunciado:
"Enunciado 36. A assistência obrigatória prevista no art. 9º da Lei nº 9.099/1995 tem lugar a partir da fase instrutória, não se aplicando para a formulação do pedido e a sessão de conciliação."
Ademais, a extinção do processo deve ser uma consequência jurídica da inércia da parte reclamante em atender ao chamado judicial para se fazer presente na audiência de conciliação, não sendo admissível que o direito ao acesso à justiça, equiparado, neste caso por uma questão de isonomia à devida defesa por parte do réu, seja subtraído por uma interpretação rápida e formal da norma quando a parte reclamante compareceu no momento apropriado e se manifestou sobre a proposta do reclamado.
Portanto, as decisões em comento alcançam efeito contrário ao pretendido pelo legislador, ao estabelecer os Juizados Especiais, pois acabam por burocratizar este instrumento de defesa de direitos tão importante para a sociedade brasileira!
Fonte: jusbrasil.com.br/artigos/Georlando Rios Santana